MEMÓRIA DA DITADURA - O BRIGADEIRO MIRANDA DE CARVALHO

Era 12 de junho de 1968 quando o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho foi chamado ao gabinete de seu comandante, o brigadeiro João Paulo Burnier. O chefe queria lhe falar sobre o mais recente plano para livrar o Brasil da “ameaça comunista” e desqualificar de uma vez por todas a oposição que, para setores militares, tentava mergulhar o país no caos e na desordem. Para que tudo funcionasse, a atuação do oficial e de sua esquadra era fundamental


Os planos do chefe, porém, foram frustrados pelo capitão, que se recusou a colocá-los em prática, proibindo o emprego de seus homens no ato — a explosão do Gasômetro no Rio de Janeiro — que, se concretizado, seria a maior tragédia da história brasileira. Ele também informou o caso a outras autoridades. Burnier, porém, sempre negou as denúncias.
    Para muitos, a decisão do oficial foi um gesto heroico sem precedentes. O capitão que corajosamente disse “não” a uma ordem de um integrante da chamada linha dura da ditadura militar nasceu, no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1930, filho de um advogado e de uma dona de casa.
       Ele cresceu no bairro de Vila Isabel, Zona Norte, e, aos 18 anos, ingressou na Força Aérea Brasileira (FAB), ao mesmo tempo em que se dedicava a outra paixão: o basquete. Integrou a equipe do Grajaú, com a qual foi campeão carioca da modalidade, em 1949. Era um jogador conhecido pela grande impulsão que tinha e por gostar de imitar os Globetrotters, os astros do basquete americano. Foi também nas quadras que surgiu o apelido pelo qual ele ficaria conhecido para o resto da vida: Sérgio Macaco.
A paixão pelo esporte o levou a concluir a faculdade de Educação Física e o amor pela aviação o levou a seguir carreira na Aeronáutica. Em 1959, ajudou a criar o Para-Sar, unidade de elite da Força Aérea Brasileira especializada em busca e salvamento em lugares inóspitos. 
Além de salvar vidas, o Para-Sar — cujo nome é formado pela junção de “Para” (abreviatura de Paraquedista) e “Sar”, a sigla em inglês para Search and Rescue (busca e salvamento) — também era empregado em missões especiais como a prospecção geológica de superfícies, localização de tribos indígenas isoladas, resolução de conflitos em áreas de fronteira, fixação de rotas de navegação aérea. 
As missões especiais fizeram com que Sérgio Macaco pasasse muito tempo nas selvas brasileiras, atraindo a confiança e simpatia de personalidades atuantes no interior do país, como os irmãos Claudio e Orlando Villas Boas e o médico Noel Nutels, além dos próprios índios, que o chamavam de “Nambiguá caraíba” - homem branco amigo.
Na ocasião do encontro com o seu comandante, o brigadeiro Burnier, em 1968, Sérgio Macaco já era um militar de sólida carreira: era capitão-paraquedista com aproximadamente 900 saltos, seis mil horas de voo e quatro medalhas por bravura. Na ocasião, Burnier era chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza Mello. 
Um dos expoentes da extrema-direita brasileira, Burnier chefiara a revolta militar de Aragarças, em 1959, contra o governo de Juscelino Kubitschek, além de criar o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica, órgão de ligação da Aeronáutica com o Serviço Nacional de Informações (SNI), responsável pela espionagem e repressão no período militar.
O plano de Burnier para acabar com o comunismo no Brasil previa uma série de atentados a serem executados pelo Para-Sar: bombas explodiriam em alvos específicos, como a loja de departamentos Sears, o Citibank e a embaixada americana. Além disso, 40 personalidades opositoras ao regime seriam sequestradas e lançadas de um avião no meio do oceano. 
A lista de sequestrados tinha nomes como Carlos Lacerda, JK e dom Helder Câmara. O ato final seria a explosão do Gasômetro do Rio de Janeiro — naquela época responsável pelo fornecimento de gás para a cidade e, hoje, desativado — e da represa de Ribeirão das Lajes, que fornecia parte da energia elétrica para a capital fluminense.
A concretização do plano de Burnier representaria um verdadeiro banho de sangue: apenas a explosão do gasômetro, planejada para ocorrer na hora do rush, mataria em torno de 100 mil pessoas. A culpa seria atribuída aos grupos de esquerda, o que legitimaria uma verdadeira “caça às bruxas”, com o apoio da opinião pública, que seria devidamente preparada para apoiar esse endurecimento do regime. 
Perguntado por Burnier se concordava com o plano, Sérgio Macaco respondeu:
— Não. Não concordo. E enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá. (...). Não me calo e darei conhecimento de tais fatos ao ministro.
A recusa de Sérgio Macaco e do Para-Sar em executar as ordens de João Paulo Burnier, bem como a posterior exposição do plano na imprensa, geraram um imenso mal-estar na Força Aérea Brasileira. Inquéritos foram instaurados e confirmaram os relatos do capitão Sérgio, que tinha 37 cabos e sargentos do Para-Sar como testemunhas. 
O brigadeiro Burnier, morto em 2000, aos 80 anos, sempre negou as denúncias e atribuía o ocorrido à “insubordinação e rebeldia” do capitão.
A atitude de Sérgio Macaco rendeu-lhe consequÊncias: foi preso por 25 dias, respondeu a processos na FAB, no SNI, no Ministério da Justiça e no STM, além de ter sido processado pelo próprio Burnier. Em todos os casos foi absolvido. Também foi transferido para Recife, até que em 29 de junho de 1969, foi compulsoriamente reformado pelo AI-5.
Em 1979, quando foi editada a Lei da Anistia, Sérgio Macaco se recusou a pedir o benefício, uma vez que não poderia ser perdoado por um crime que não cometeu. Ele permanecia firme em sua intenção de ser reintegrado às Forças Armadas, com direito a soldos atrasados e mudança de patente. Para isso, contava com a ajuda de figuras importantes, como o brigadeiro Eduardo Gomes, que chegou a escrever, em 20 de maio de 1974, uma carta ao presidente Ernesto Geisel pedindo justiça e reparação ao capitão, segundo reportagem publicada no GLOBO em 1º de julho de 1979.
Outro dos seus aliados era o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, de quem fora assessor antes da punição. Ao jornal, na mesma edição, Sérgio Macaco declarou:
— Continuo, apesar da longa espera, confiando nas promessas que me foram feitas. Sou amigo do ministro Délio Jardim de Mattos e creio que ele está examinando a minha situação com especial atenção. Cumpri o prometido com o brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Cordeiro de Farias: não falei quase nada sobre o caso Para-Sar. Mas também não posso ficar indefinidamente esperando.
Nos anos 1980, enquanto pleiteava na Justiça comum a reversão de seu afastamento da Força Aérea Brasileira, Sérgio Macaco envolveu-se com a política, assumindo como suplente o mandato de deputado federal pelo PDT-RJ.
Em 1989, resolveu levar sua causa ao STF. O julgamento do processo, que teve como relator o ministro Celso de Mello, ocorreu em 6 de setembro de 1991, mas o ministro Marco Aurélio Mello pediu vistas do processo, o que adiou a decisão do tribunal por mais de um ano. A sentença final só saiu em 28 de outubro de 1992, há exatos 25 anos, e deu ganho de causa ao capitão.
A vitória de Sérgio Macaco no STF estampou as páginas do GLOBO em 29 de outubro de 1992. Com a manchete “Caso Para-Sar: STF promove capitão a brigadeiro”, o jornal noticiou que, além da patente de brigadeiro — que ele teria alcançado se tivesse permanecido na ativa — Sérgio Macaco conquistou os soldos e vantagens financeiras que não recebeu desde que a punição lhe fora aplicada, em 1969. 
A decisão do tribunal, no entanto, levou mais de um ano para ser cumprida. O comando da Aeronáutica se recusou a devolver-lhe a patente e passou a questão para o presidente da República, Itamar Franco, que, por sua vez, não demonstrava ter pressa em resolver o caso.
Sérgio Macaco não teve tempo de ver a justiça lhe ser feita. Acometido por um câncer no estômago, morreu em 5 de fevereiro de 1994, aos 63 anos. O decreto que lhe devolveu seus direitos foi assinado por Itamar Franco seis dias após sua morte. 
A família só recebeu os soldos e vantagens pecuniárias em 1997, um valor que totalizava R$ 82.907,15. Mas o valor que Sérgio Macaco tem para o país é muito maior do que isso.

*Natasha Correa Lima (Publicado no jornal O Globo, em 24 de outubro de 2017).

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