MEMÓRIA DA DITADURA - O CASO RIOCENTRO

A revelação, pela coluna Correio Nacional, de que um dos protagonistas do atentado ao Riocentro recebe aposentadoria de general reforça a certeza da impunidade corporativa que beneficiou o então capitão Wilson Luiz Chaves Machado. O caso, que por pouco não teve dimensões trágicas, ocorreu em 1981 — nos últimos anos da ditadura — e não pode ser esquecido.

Quando procuram amenizar ou justificar assassinatos e torturas ocorridos a partir do Golpe de 1964, muitos dos atuais comandantes oficiais ressaltam que a esquerda também cometeu crimes, citam assaltos a bancos e, mesmo, assassinatos como o do soldado Mário Kozel Filho, morto num atentado à sede do então II Exército.

Eles têm o direito de apontar esses fatos que também fazem parte da história, mas erram ao equiparar ações de grupos armados durante um regime de exceção a crimes cometidos pelo Estado. Importante lembrar que a maioria dos envolvidos em ações ou conspirações contra o regime já havia sido punida, muitas vezes, de forma bárbara e ilegal.

O caso Riocentro, porém, não se enquadra em qualquer possibilidade de argumentação ou relativização, ocorreu quase dois anos depois da anistia assinada, em 1979, pelo presidente João Baptista Figueiredo. As organizações de esquerda tinham sido dizimadas, não havia qualquer tentativa de luta armada. O que existia era a resistência de setores militares e policiais que, envolvidos com a parte mais suja da repressão, não aceitavam a redemocratização e temiam ser punidos por seus atos.

A partir de 1980, ex-integrantes dos porões passaram a promover atos terroristas, como a explosão de bancas de jornais que vendiam jornais de esquerda. No mesmo ano, uma carta-bomba enviada para a Presidência da Ordem dos Advogados do Brasil mataria a secretária Lyda Monteiro da Silva. Assim como no caso do Riocentro, esses outros crimes ficariam impunes.

Em 30 de abril de 1981, o Riocentro era palco de um show em comemoração ao 1º de Maio. A bomba que feriu Machado e matou o sargento Guilherme Pereira do Rosário explodiu no carro em que estavam, um Puma, no estacionamento do centro de exposições. Outra bomba chegou a ser lançada numa subestação elétrica, mas, por sorte, não gerou danos. Para tentar encobrir evidências de que militares eram responsáveis pelo atentado, o Exército mudou o responsável pelo Inquérito Policial-Militar, que ficou a cargo do coronel Job Lorena de Sant'Anna.

O resultado foi uma peça de ficção, que transformava em vítimas aqueles que tentaram, com a explosão, causar um tumulto capaz de gerar dezenas ou centenas de mortos e de abalar o processo de abertura. Sant'Anna acabaria recompensado com o posto de general. Machado também seria premiado com sucessivas promoções e receberia a Medalha do Pacificador. Por muito menos, anos depois, o capitão Jair Bolsonaro, acusado de planejar atentados em protesto contra os baixos salários dos militares, seria constrangido a deixar o Exército.

A farsa da investigação oficial acabaria desmontada, ponto a ponto, pela imprensa. Em 1999, o Exército abriu outro IPM que, desta vez, apontou os culpados, entre eles, Machado. Mas, apesar do empenho do Ministério Público, não foi possível levá-los ao banco dos réus — a Justiça considerou os crimes prescritos e tratou de incluí-los na anistia concedida bem antes do atentado.

Lembrar do caso Riocentro não representa uma tentativa de revanchismo — palavra tão usada por militares durante a redemocratização. É sim um alerta, uma forma de mostrar que a história sempre cobra o preço das omissões e que recordar é também uma forma de evitar novas tragédias. Mostra também a necessidade de muitos dos atuais comandantes militares admitirem o óbvio, que o Brasil viveu sob uma ditadura entre 1964 e 1985.

Esses oficiais — que eram bem jovens nos anos 1960/1970, não participaram da repressão — costumam usar eufemismos para classificar o período em que o Estado brasileiro interrompeu o processo político, cassou mandatos, torturou e assassinou. Uma negação que prejudica a imagem das próprias instituições, compromete formação de novos militares, dá margem para a permanência do fantasma da ruptura institucional.

*Fernando Molica - O Atentado, artigo publicado no Correio da Manhã em 16/6/2023.

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